Na internet, podemos encontrar, em plataformas como redes sociais, blogues ou fóruns, comunidades que giram em torno de mensagens que defendem uma perspetiva antifeminista. Nestes espaços, os intervenientes são autoproclamados misóginos e, nas palavras de especialistas citados pela Agência Lusa, “transformam a violência de género em espetáculo ‘online’”. No final, lucram com isso. É este o território da manosfera.
O termo, explica a investigadora em temas de violência de género e estudos feministas, Maria João Faustino, surgiu por volta de 2008 e “serve para designar um universo bastante amplo”. “Refere-se a um conjunto de subculturas e grupos de identidades masculinistas, que se encontram em canais, chats e fóruns online”, acrescenta, antes de explicar: “Não é uma comunidade homogénea, porque têm reivindicações próprias e às vezes conflituantes entre si”.
E que subgrupos podemos encontrar neste espaço? (ver caixa) Além dos incels, que “ganhou maior destaque por causa da série Adolescência”, recorda Maria João Faustino, podemos encontrar os “pick-up artists, ou coaches de engate”. A também doutorada em Psicologia refere ainda o movimento dos Men Going Their Own Way (MGOTW) “que não querem ter contacto social ou sexual com mulheres” e os Men’s Rights Activists, “que defendem que os homens são discriminados”.
Este é um local onde qualquer um com acesso a um ecrã pode entrar, mesmo que sem intenção. “Muitos homens entram em contacto com o conteúdo ao procurar fóruns para falar abertamente sobre questões masculinas”, indica o portal ONU Mulheres. “Um rapaz pode cruzar-se com a manosfera quando está à procura de coisas convencionalmente masculinas”, esclarece Maria João Faustino, como informação ou dúvidas sobre desporto, ginásio, tatuagens, etc.
«Um rapaz pode cruzar-se com a manosfera quando está à procura de coisas convencionalmente masculinas»
Maria João Faustino, Investigadora
Um fenómeno amplificado pelo online
Em 2024, o Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, assinou um relatório sobre a violência contra as mulheres e meninas. O documento destaca alguns fatores como responsáveis pela existência de novos riscos neste campo, entre eles as “rápidas mudanças” tecnológicas. A presença da manosfera em plataformas convencionais, usadas no dia-a-dia, também é notada. Através do uso destas ferramentas digitais”, detalha o relatório, é promovida “violência baseada no género, abusos, discurso de ódio, controlo, assédio e a proliferação de conteúdos misóginos”.
Os subgrupos da Manosfera
Incels
São celibatários involuntários ou homens/rapazes que não conseguem ter relações sexuais e amorosas e que culpam as mulheres e os homens sexualmente ativos por isso, explica-nos a BBC.
Pick-up artists
De acordo com um artigo da investigadora italiana Giovanna Vingelli, são auto-proclamados especialistas em sedução ou então “wannabes” que partilham guiões e dicas para os homens terem “sucesso sexual”.
Men Going Their Own Way
Segundo a especialista Deniese Kennedy-Kollar, a subcultura dos Men Going Their Own Way, ou MGTOW, é composta por separatistas masculinos que se “recusam a ter qualquer tipo de relações com mulheres”, de maneira a que estas abandonem o feminismo e se tornem submissas aos homens.
Men’s Rights Activists
Segundo uma pesquisa de organizações norte-americanas, estão inseridos nos Men’s Rights Activists (MRA) grupos ou ativistas que afirmam defender os direitos dos homens e consideram que o sistema favorece as mulheres em diversos campos: desde a guarda parental, às falsas acusações de abuso e passando pelo serviço militar obrigatório.
O crescimento da manosfera parece indissociável da sua vertente tecnológica. Como nos explica Maria João Faustino, o online deu “condições de amplificação muito fortes” ao “ressentimento [contra as mulheres]”. “A manosfera é herdeira de movimentos de direitos dos homens nascidos nos anos 70”, acrescenta a especialista, detalhando que “o anonimato, a vertigem algorítmica, a oferta de conteúdos mais extremados e a validação dos pares” são algumas das condições que favorecem a sua disseminação.
Neste campo, o relatório da ONU alerta que a expansão da manosfera é “particularmente preocupante” devido ao envolvimento de jovens adultos. Esta mobilização “coincide com um crescimento do conservadorismo entre os jovens” acerca das suas visões sobre igualdade de género. É citado ainda um estudo realizado em 31 países, onde se constata que “os jovens homens são mais conservadores do que os homens das gerações mais velhas”.
Adolescência. A série que saiu do ecrã para entrar nas escolas
Lançada a 13 de março, Adolescência já é uma das produções mais vistas de sempre da Netflix. Fica a saber tudo sobre esta série e as consequências que tem produzido fora do ecrã, nomeadamente a sua transmissão em todos os estabelecimentos de ensino britânicos.
Uma das ideias destacadas pelo relatório é que o grupo etário de jovens adultos é aquele onde existe uma maior probabilidade de encontrar quem defenda que “a promoção da igualdade de género é discriminatória contra os homens”. “A manosfera vê o feminismo como grande responsável pela decadência da ordem natural e as mulheres como quem detém o poder no mundo”, completa Maria João Faustino.
A desregulação das redes sociais e a monetização de conteúdos polémicos, controversos ou polarizadores são fatores apontados por Maria João Faustino como elementos que favoreceram o crescimento da manosfera.
Andrew Tate, o influencer da Manosfera
Uma das figuras com maior destaque na manosfera é o kickboxer tornado influencer britânico, Andrew Tate. Em 2025, Tate só tem palco numa rede social – o X – onde soma atualmente mais de 10 milhões de seguidores. Nas restantes redes sociais, como TikTok, YouTube, Facebook e Instagram, as contas do influencer foram banidas devido ao conteúdo promovido. De acordo com a Meta, por exemplo, a exclusão de Tate das plataformas deve-se à política sobre “organizações e indivíduos perigosos”.
Além do X, Tate também tem a sua plataforma privada, que se chama The Real World onde, em 2024, segundo a publicação The Register, tinha aproximadamente 968 mil contas de utilizador, embora apenas 113 mil se encontravam ativas.
Ódio online. A internet está zangada. Porquê?
Cada vez mais, partilhamos o espaço online com trolls, haters e bullies que recorrem a linguagem agressiva e, por vezes, de ódio. De onde vem esta raiva? E como devemos reagir?
O antigo kickboxer, além dos ideais misóginos, partilha nas redes sociais um estilo de vida luxuoso, caracterizado por carros desportivos de luxo, festas em iates e viagens em jatos privados. Nos últimos anos, tem visto o seu nome envolto em polémicas, desde denúncias de agressões físicas, verbais e ameaças de morte a uma ex-namorada, a acusações de crime organizado de tráfico humano, incluindo de menores, exploração sexual de mulheres e crimes financeiros, como branqueamento de capitais e negócios ilícitos. Andrew Tate está envolvido, neste momento, em vários julgamentos e investigações judiciais na Roménia, Reino Unido e Estados Unidos da América.
Um sistema que legitima violência e exclusão
A doutorada em Psicologia, Maria João Faustino, descreve os efeitos da manosfera como sendo “muito danosos”. Embora estes grupos possam oferecer, à primeira vista, “uma sensação de pertença grupal”, explica a especialista, acabam por "reforçar o isolamento e um sistema de crenças que normaliza, valida e legítima a violência contra as mulheres”. “Este sistema também é muitas vezes autodestrutivo”, reforça.
«O anonimato, a vertigem algorítmica, a oferta de conteúdos mais extremados e a validação dos pares”, são algumas das condições que favorecem a disseminação deste conteúdo»
Para prevenir estes efeitos, a especialista defende que se deve "exigir responsabilidades macro que passem por regular efetivamente as redes sociais”. Refere também o papel “fundamental” dos media para “alertar, sensibilizar, desmontar e mostrar os perigos e fragilidades deste discurso”.
No mesmo sentido, Maria João Faustino recorda ainda o papel da Escola para dar ferramentas aos jovens, dando os exemplos da literacia digital ou literacia para os media. “Se estes discursos forem devidamente desmontados de forma preventiva e as crianças educadas a ver rapazes e raparigas como iguais, mais dificilmente vai haver espaço para que estas ideias penetrem e para que estes grupos sejam apelativos”, conclui.