“Nós temos de soar como um grupo”. É assim que se inicia uma tarde de ensaios na Escola Básica do Bairro do Armador, em Lisboa. A frase, dita pelo professor João Barata, é proferida na sala de aula onde os alunos que constituem o conjunto cordas preparam o seu reportório. Daqui a alguns minutos, estes estudantes vão juntar-se aos que fazem parte dos outros naipes – sopros e percussão – para mais um ensaio geral de um dos núcleos do projeto Orquestra Geração.
Este é o ensaio da Orquestra Municipal de Lisboa, constituída por alunos das várias escolas da região que fazem parte da Orquestra Geração. O objetivo do projeto – que celebra este ano 17 anos – é “o desenvolvimento de todas as crianças e jovens que nele participam”. “Atenção, estamos a crescer, é a própria música que vai subindo”, indica o professor João Barata, durante o ensaio, que assim tenta guiar os alunos.
Os estudantes que fazem parte desta iniciativa destacam o impacto positivo que a música tem exercido nas suas vidas. É na Orquestra Geração que descobrem, muitas vezes, uma paixão e um novo talento, contam. “Ao longo dos anos, fui sempre aprendendo com todos os professores, que me foram ajudando a progredir”, conta uma das participantes, Guadalupe Favinha.
Guadalupe toca violino e faz parte deste projeto há cinco anos. Decidiu entrar por procurar uma nova experiência. “Quando entrei no 5.º ano, inscrevi-me com duas amigas”, conta, antes de acrescentar: “Pensei ‘porque não? Vou ver como é’”. Desde então, a estudante descobriu o gosto pela música clássica, ao ponto de hoje desejar uma carreira ligada a esta área: “Agora quero fazer disto a minha vida”.
A seu lado, a aluna de viola de arco, Laura Nair, conta que a ligação com a música começou muito antes de ingressar neste projeto. “Eu já estudava música antes da orquestra, mas era piano”. Para Laura, foi a partir de um convite que este sonho começou: “na escola onde eu estava, tínhamos uma pequena orquestra de cordas onde duas das professoras faziam parte da Orquestra Geração. Daí surgiu o convite para entrarmos”, confessa a estudante.
«Se não fosse a Orquestra Geração eu não sabia o que ia fazer da vida. Tenho aprendido muito»
João Almeida, estudante participante do projeto Orquestra Geração
Mais do que música e concertos
“Nós estamos cá para formar pessoas, não músicos”, sublinha a coordenadora de dois núcleos da Orquestra Geração, em Almada e Lisboa, Margarida Ferreira. Para a professora, este projeto não é apenas sobre música, mas sobretudo sobre a educação de todos os jovens com os quais tem a oportunidade de contactar. “Essencialmente, o projeto procura formar pessoas e dar-lhes valores”, sublinha Margarida Ferreira. Sabendo que este é um trabalho conjunto, a professora salienta que é também “através da prática da música em grupo que [os alunos] estão a adquirir competências de respeito pelo outro”.
O espírito de união marca presença em todos os ensaios e concertos, destaca João Barata. “Este é um projeto importantíssimo porque através da música conseguimos fazer com que as pessoas se unam em torno de um objetivo”, revela. Sobre o seu papel, o professor realça que procura “guiar os jovens, sendo que qualquer professor acaba por ser um elo de união entre o aluno, a comunidade e a música”.
O caminho de educar e incluir
Foi a partir de uma parceria entre a Escola Artística de Música do Conservatório Nacional (EAMCN), a Câmara Municipal da Amadora e a Fundação Calouste Gulbenkian, que nasceu a Orquestra Geração / Sistema Portugal, no ano letivo 2007/2008, como um projeto educativo e de inclusão social.
Estando hoje presente em várias escolas da área metropolitana de Lisboa (Almada, Amadora, Lisboa, Loures, Oeiras e Sesimbra), além de Coimbra e Castanheira de Pera, a Orquestra Geração chega hoje, de acordo com o site do projeto, a cerca de 1700 crianças e jovens entre os 3 e os 20 anos, essencialmente de “meios sociais mais desfavorecidos”: “Crianças e jovens provenientes de bairros problemáticos, com problemas de insucesso e abandono escolar e com dificuldades de integração social”.
Em entrevista à FORUM, a adjunta da Direção da Escola Artística de Música do Conservatório Nacional para a Orquestra Geração, Helena Lima, recorda os primeiros passos desta iniciativa. “O projeto nasceu ligado à escola de música do Conservatório Nacional”, revela a também presidente da AOSJSP (Associação das Orquestras Sinfónicas Juvenis Sistema Portugal). Foi em 2006, através de um convite feito pelo diretor do Departamento de Educação da Câmara Municipal da Amadora e endereçado ao diretor do Conservatório Nacional, o professor Wagner Diniz, que começou a Orquestra Geração.
«Este é um projeto importantíssimo porque através da música conseguimos fazer com que as pessoas se unam em torno de um objetivo»
João Barata, professor de música no projeto Orquestra Geração
A educação e a inclusão social estão presentes desde o início, sendo que “o que criou a matriz do projeto foi o desenvolvimento das orquestras em contextos escolares, maioritariamente em contextos de escolas tipologia TEIP (Territórios Escolares de Intervenção Prioritária)”, recorda Helena Lima. Quanto à origem deste conceito, a presidente da AOSJSP revela que foi Wagner Diniz – que já conhecia o projeto venezuelano “El Sistema” (ver caixa) – “que pensou que talvez esse fosse um enquadramento interessante”.
Tendo em conta as dificuldades socioeconómicas dos participantes, acrescenta Helena Lima, o projeto procura, através de mecenas, encontrar apoios para que os estudantes possam continuar estudos no ensino superior. Graças ao apoio de instituições como a Fundação Calouste Gulbenkian, é possível criar “bolsas para alunos [que necessitem], independentemente de seguirem um curso de música ou estarem a seguir outra formação”, conta. Estes apoios são também relevantes para a aquisição de instrumentos, uma vez que nenhum dos alunos necessita de fazer esse investimento, sendo-lhes cedido gratuitamente um instrumento para participar no projeto.
O caminho até à Orquestra
No que toca à participação neste projeto, “os alunos e as turmas podem ser identificados pelos diretores ou pelos coordenadores das escolas, como quem deveria beneficiar do projeto por diversas circunstâncias”, declara Helena Lima. Ainda assim, acrescenta, existem “também muitos alunos que chegam ao projeto autonomamente”, sendo que todos os alunos “podem estar na orquestra desde o primeiro ano de escolaridade até ao 12.º ano escolar”.
Sobre o trabalho que é feito, Helena Lima revela que “são cerca de sete horas semanais em que o grande enfoque é a orquestra, mas também [os diferentes] naipes”. Além dos ensaios em orquestra, todos os alunos “trabalham sectorialmente, em grupos instrumentais e têm ainda um complemento de trabalho individual”.
Além do impacto na sua vida escolar, é na Orquestra Geração que muitos alunos encontram uma paixão pela música e que orientam, muitas vezes, as suas vidas.
«[Este é um projeto onde] muitos jovens descobrem também um percurso de vida»
Helena Lima, adjunta da Direção da Escola?Artística de Música do Conservatório Nacional para a Orquestra Geração
Um novo percurso de vida
Helena Lima revela que este é um projeto onde “muitos jovens descobrem também um percurso de vida”, sendo que além do 12.º ano, existem “outros alunos que se mantêm durante o ensino superior, particularmente aqueles que seguem um ensino especializado da música”, acrescenta.
Esse é o caso de João Almeida. O estudante do ensino superior toca trompa na Orquestra Geração, mesmo depois de completar o curso profissional de música até ao 12º. Ano e resolver seguir um sonho na área, influenciado por este projeto. Hoje, concilia os ensaios e os concertos com o curso superior de música e com a participação na banda do Exército. “Se não fosse a orquestra geração eu não sabia o que ia fazer da vida”, salienta o estudante, que acrescenta: “Tenho aprendido muito”
Como João, existem outros exemplos de alunos que, quer tenham seguido a vertente musical ou não, levam sempre consigo ensinamentos da Orquestra Geração. Segundo a professora Margarida Ferreira, “há muitos casos de sucesso em que eles [alunos] no início são um ‘terror’”, conta, entre risos: “Depois, crescem sempre connosco e viram adultos com muitos valores”.
Quanto aos dias de ensaios, são sempre bastante preenchidos, onde além das aprendizagens, se vive um ambiente de convivência e amizade entre os participantes. Sobre aquilo que mais destaca nestes dias, Laura Nair não hesita na resposta: “O tempo de convívio que passamos uns com os outros”. Já para João Almeida, “os dias de concertos são os melhores”.
Fátima Duarte é funcionária na Orquestra Geração e uma das pessoas que mais tempo passa com estes estudantes. Segundo a própria, este projeto “é como se fosse uma família para os alunos”.
Ao longo dos dias, enquanto acompanha estes alunos, desde as salas de aula às salas de ensaio ou até deixá-los com os pais, a encarregada conta que “há miúdos que até são muito introvertidos, mas depois chegam aqui e ficam muito enturmados e com muita garra, muita vontade”, destaca Fátima Duarte.
O impacto da Orquestra Geração é destacado por todos os estudantes que aqui passam, desde os mais novos aos mais velhos. Através deste projeto orquestral, estes alunos podem ter as mesmas oportunidades e, juntos, fazer música. Francisco Salgado é outro destes exemplos – está na Orquestra Geração desde os seus 5 anos. Em conversa com a FORUM, o aluno resume numa frase a influência deste projeto na sua vida: “Aqui posso ter um futuro”.
O “sistema” venezuelano
A metodologia “El Sistema” foi fundada em 1973 pelo prémio vencedor do Prémio Erasmus, José António Abreu, enquanto projeto musical e Social. O objetivo original passava por, através da música – especificamente, tocando numa orquestra –, crianças de toda a Venezuela pudessem aprender “como viver em conjunto, desenvolvendo as suas competências e mantendo-se distantes de realidades como o crime e as drogas”, explica a Orquestra Geração, no seu site. De acordo com a mesma fonte, um total de 500 mil crianças e jovens venezuelanos já participaram no projeto. O maestro e violinista venezuelano Gustavo Dudamel é a principal “estrela” nascida no “El Sistema”, tendo chegado a maestro titular de uma das maiores orquestras do mundo, a Filarmónica de Los Angeles, com apenas 28 anos. Depois de 42 anos, o projeto é agora representado pela Fundação Musical Simon Bolivar, que dinamiza três orquestras diferentes. O projeto El Sistema marca hoje presença em todo o mundo, nomeadamente na América Latina, nos Estados Unidos da América, no Canadá e um pouco por toda a a Europa. Em estreita relação com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, a Orquestra Geração procura atuar ao nível do acesso igualitário à cultura e ao ensino da música. Razão pela qual, tem merecido o reconhecimento de várias entidades, nomeadamente da Assembleia da República, através da atribuição da Medalha de Ouro do 50º aniversário da Declaração dos Direitos da Humanidade, em 2018.